* * * Extraído do Portal UOL * * *
Belchior anunciou em seus versos o
desejo de desaparecer
Antonio Carlos Belchior comandou uma rebelião silenciosa na música
popular brasileira. Uma rebelião contra os totens da geração anterior (Caetano
Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil), contra as limitações impostas
pela ditadura policial, contra a diminuição do papel libertário da
juventude na afirmação do futuro, contra os horizontes curtos da poesia musical
de deglutição fácil.
Ex-monge capuchinho, ex-estudante de medicina, ele trouxe uma
ética rígida de comprometimento e romantismo para a nossa literatura musicada,
e ninguém jamais irá tão longe quanto ele, nunca. Primeiro, porque Belchior foi
tão distante em seu questionamento que optou pela própria desaparição como sua
derradeira obra.
De recursos musicais parcos, Belchior apareceu para a música em
1967, em Fortaleza, no Ceará, arregimentado na faculdade de medicina pelos
amigos talentosos (Jorge Mello, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Fagner, Amelinha)
para as fileiras da música. Tocava um violãozinho limitado, conhecia Luiz
Gonzaga e Cego Aderaldo, assim como Ray Charles e Beatles. Tinha, contudo, um
componente delirante: a filosofia católica, que tinha estudado como frade no
Mosteiro de Guaramiranga entre 1963 e 1966.
Seus embates entre a culpa
católica e o visionarismo libertário fizeram dele o maior poeta de sua geração.
Como Rimbaud e William Blake, que ele amava, atravessou territórios entre a
alma e o corpo para forjar sua obra, que é inigualável.
Belchior viveu em festas faustosas e morou em canteiro de obras. Fascinou Elis Regina e também Raul Seixas. Enfrentou a exceção democrática com os versos mais duros e guerrilheiros que a MPB conheceu, mas que eram tão finos que os censores nem entenderam direito. Debateu com Caetano Veloso e foi ao Congresso em busca de melhores condições de pagamentos de direitos autorais.
Belchior viveu em festas faustosas e morou em canteiro de obras. Fascinou Elis Regina e também Raul Seixas. Enfrentou a exceção democrática com os versos mais duros e guerrilheiros que a MPB conheceu, mas que eram tão finos que os censores nem entenderam direito. Debateu com Caetano Veloso e foi ao Congresso em busca de melhores condições de pagamentos de direitos autorais.
Seus discos-chave são os três primeiros: "Mote &
Glosa", "Alucinação" e "Coração Selvagem". Nesses três
discos, exercitou as qualidades que o distinguiriam para sempre. "Mote
& Glosa" é a experimentação mais vanguardística aplicada à tradição
regional, ao pó do sertão. "Alucinação" é a visão do Dylan caboclo, é
a transcriação da folk music em uma estrutura de romantismo suburbano.
"Coração Selvagem" é o manifesto libertário, o rompimento com as
amarras sociais.
Belchior viveu entre o Rio e São Paulo, estabelecendo-se nesta
última. Foi o primeiro a fazer uma canção como se deve para a metrópole que
abraçou, a paulicéia. Chama "Passeio", está no seu primeiro disco.
Produziu discos nos Estados Unidos ("Todos os Sentidos"
e "Era Uma Vez um Homem e o Seu Tempo"), brigou de faca com seu
grande antípoda musical, Fagner, amou muitas mulheres e foi cortejado como sex
symbol pela indústria musical. “Mas a mulher, a mulher que eu amei, não não
pode me seguir, não”. Almejou tornar-se independente da indústria e construiu
suas próprias gravadoras (Paraíso Discos) e estúdio (Camerati). Fracassou.
Não houve artista mais fora dos trilhos do que Belchior na música
brasileira. Foi o grande outsider da canção, até Raulzito era mais gregário do
que ele. Fez canções concretistas em 1967, 1968. Falou de psicanálise, futebol,
Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Dante Alighieri, Drummond. Em suas
canções, nada disso soa blasé, forçado, é tudo orgânico, macio, encaixado.
Belchior nunca foi papudo - são famosos os versos de "Velha Roupa
Colorida" nos quais ele cita Poe, Beatles e Luiz Gonzaga de uma tacada só.
A grandeza de sua poesia movimentou teses de doutoramento, acendeu
a chama em artistas jovens do Brasil todo, que abraçava como parceiros, como
Gracco (compositor de "Coração Alado") e até artistas de outros
quadrantes, como Arnaldo Antunes e Aguilar, de São Paulo. Mas, em toda sua
trajetória, o desejo de desaparecer, o inconformismo com os rumos da vida
coletiva e também a individual marcavam seus versos. Cumpriu-se uma profecia.
Como ele disse, na canção "Depois das Seis" (do disco "Objeto
Direto"):
“Até
logo. Eu vou indo.
Que é que eu estou fazendo aqui?
Quero outro jogo
Que este é fogo de engolir”
Que é que eu estou fazendo aqui?
Quero outro jogo
Que este é fogo de engolir”
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